Semana passada nos deparamos com a foto de Lada Koroleva, 19 anos, com suas duas filhas em um metrô da Rússia. Nada de anormal, se não fosse uma caixa transportadora em suas costas, indicando que ela está trabalhando e, ao mesmo tempo, amamentando, cuidando e levando as suas filhas com ela.
Não é a primeira foto desse tipo, nem de uma história que não seja comum, onde se mostra a vida de mulheres que tem que levar seus filhos aos seus trabalhos para prover o sustento em plena pandemia.
Sem mencionar o triste caso da empregada doméstica Mirtes Santana ocorrido em junho deste ano, que perdeu o filho em um trágico acidente ao cair do prédio de luxo após deixá-lo com a patroa.
Episódios como o de Mirtes e de seus filhos em empregos são corriqueiros. Em outubro de 2019, também conhecemos uma venezuelana que se mudou para a Argentina e foi flagrada com sua bebê no colo com outra caixa transportadora nas costas, em uma bicicleta.
Mais tarde, ela foi encontrada e afirmou que ia deixar a filha na creche e, depois, ia trabalhar, mas assegurou que não trabalha com a bebê, como pensariam na foto, que viralizou.
Afora essas histórias que sabemos, lemos e testemunhamos ao vivo, o que mais chama a atenção, além da romantização dessas situações e de outras formas capitalistas de exploração, são os comentários na internet, sempre chocantes, com o dito cancelamento virtual, que vai de um extremo de amor ao próximo ao ódio simples e declarado:
“coitada”, “guerreira”, “parabéns”, “exemplo para todas” ou, então, “quem pariu que cuide”, “só tá assim porque quer” e, o pior e mais machista de todos, advindo, inclusive, de algumas mulheres: “quem mandou procurar filho?”.
Entretanto, como antropólogas, somos curiosas e sabemos que o machismo e o patriarcalismo que demarcam o preconceito contra as mulheres são sintomáticos em nossa sociedade atual, que é extremamente conservadora, elitista, branca, pseudo-religiosa e que ainda impõe um papel hierárquico e secundário ao gênero feminino.
A uberização do trabalho não é medida apenas pelo trabalho feminino, todavia, tal precarização nos atinge de modo significativo devido a total ausência de direitos trabalhistas, plano de saúde, garantia de férias, horas extras, décimo terceiro salário, dias remunerados em caso de doença, auxílio alimentação, creche, salário família, auxílio maternidade, FGTS e demais arduamente conquistadas ao longo dos anos de movimentos sindicais e feministas que conseguiram garantir à mulher o lugar em espaços de poder e disputa por uma vaga no mercado de trabalho, mas que, com o crescimento do neoliberalismo e do enfraquecimento do Estado Brasileiro nos últimos anos enquanto elemento agregador e garantidor de empregabilidade, a terceirização da economia trouxe a insegurança, o aumento da jornada de trabalho e a pauperização da mão-de-obra pelo chamado “mito do empreendedorismo”, que apenas ressalta os altos índices de desigualdade não apenas salarial, que historicamente a mulher ocupa no mercado, com os fixos 30% a menos na renda mensal em relação aos homens, como também, alargou o fosso na questão de gênero, com as mulheres trabalhando até quatro vezes mais que os homens em termos práticos: no emprego ou “bico”, na casa, com os filhos e nas relações conjugais e de auto cuidado.
Nós, mulheres, somos pressionadas por tudo e por todos/as, em diversos sentidos:
no trabalho, no comportamento, na sexualidade, no cuidar da casa e dos filhos, em dar atenção para os maridos e companheiros/as, em finalizar as tarefas acadêmicas, em vigiar o corpo, para não engordar e manter um padrão magro, totalmente fora do biotipo das brasileiras, além de conservar a mente equilibrada, as contas, a lição dos filhos e o controle de energia sobre si mesmas.
Na atual pandemia da COVID-19, milhões de brasileiros e brasileiras perderam os seus empregos, suas rendas fixas e, para piorar, muitos não receberam o auxílio emergencial, por inúmeros motivos, todavia, as mulheres-mães que tinham em alguns casos as redes de apoio enquanto iam aos seus trabalhos, simplesmente as perderam.
As redes de apoio eram formadas por seus familiares mais próximos, avós, tias, vizinhas, parentes, como também por instituições como creches e escolas e que, nesse momento, precisam ficar isolados por serem pessoas do grupo de risco ou devido ao forçoso, mas necessário, fechamento de espaços de aprendizado coletivo para evitar a proliferação da pandemia.
Todo esse cenário implica em estafa mental, física e psicológica, porque, ao longo da nossa educação houve a fixação dos papéis sexuais, ou seja, cada sexo tem uma forma de agir, uma tarefa a fazer e uma responsabilidade para assumir.
A menina foi sempre ensinada a brincar de boneca, cuidar da casa, lavar as roupas, a cozinhar e cuidar dos irmãos pequenos. Nossos brinquedos foram panelinhas, fogões, utensílios domésticos e bonecas que pareciam miniaturas de gente: como trocar fraldas, dar papinha, limpar o cocô. Para os meninos: bola, rua, brinquedos de engenheiro, jogos de guerra, papéis de liderança.
Foi “naturalizado” de modo coercitivo, portanto, que seja responsabilidade da mulher o cuidado com o lar, a perfeição do corpo e o recato e se, em algum momento isso não for realizado, nos culpamos e nos sentimos incompletas ou cometendo erros .
Durante a pandemia viramos malabaristas com a primeira, segunda, terceira e quarta jornadas: temos que conciliar o lar com o emprego, que virou online, remoto, home office, com as mídias, que já teríamos que ter aprendido como funciona como que por osmose, tendo que controlar tudo corretamente, além dos filhos e de nossas próprias vivências – a eterna procura por uma mulher nota 1000! No entanto, isso não é possível! Somos feitas de carne e osso, temos limites. Diante disso, é importante que todos e todas participem das tarefas domésticas, intelectuais, morais e sociais e parem de se comportar como o marido da Lada que “passa o dia inteiro jogando videogame”, segundo as palavras dela. Desse modo, podemos melhorar as relações de gênero e (des)igualdade, além de lutar por melhores condições de trabalho, saúde e oportunidades para as mulheres.
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