quarta-feira, 27 de maio de 2020

Saúde da População Negra, Doença Falciforme e a Pandemia: Fatores de Risco e Vulnerabilidades Sociorraciais - Jornal Roteiro de Notícias


Originária da África, a doença falciforme é uma mutação genética, que se espalhou pelo mundo com o deslocamento forçado da população negra escravizada. Foto: Marcello Casal Jr/Arquivo Agência Brasil


A pandemia da Covid-19, longe de ser “democrática”, trouxe como consequência imediata para cerca de 54% da população brasileira autodeclarada preta e parda um aumento dos fatores de risco ligados às suas condições de vida e ao racismo estrutural.

Um dos agravos mais severos que incide em grupos vulneráveis com ancestralidade africana em todo o país é a doença falciforme (Hb SS). A doença decorre de uma alteração da hemoglobina que resulta em inúmeras manifestações clínicas graves que podem ter consequências ao longo de toda a vida dos indivíduos.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, 3.500 crianças nascem com doença falciforme no Brasil anualmente. Segundo a Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular, estima-se que no Brasil haja 70.000 pessoas com anemia falciforme.

Devido à relação microevolutiva da doença estar associada à endemia de malária no continente Africano e Árabe-Indiano, com o advento da Diáspora Africana (tráfico de pessoas escravizadas) desde o século XVI, o fenótipo de indivíduos com a doença no Brasil é majoritariamente de grupos autodeclarados pretos ou pardos, acometendo pessoas brancas em menor número, dependendo da frequência filogenética de cada região (Naoum 2011).

No entanto, quem tem doença falciforme e as suas variantes como a Hb SF, a Hb SC e outras alterações genéticas combinadas é triplamente vulnerável quando exposto ao Coronavírus (Sars-CoV-2): primeiramente pela própria comorbidade da doença, que é crônico-degenerativa, acometendo os glóbulos vermelhos que, sem a oxigenação adequada, podem causar situações de crises falcêmicas, ocasionando diversos sintomas como: febre, infecções, dores generalizadas pelo corpo, imunossupressão, acidente vascular cerebral, icterícia, problemas pulmonares, síndrome torácica aguda etc., podendo evoluir à óbito, sendo que muitos dos sintomas e órgãos envolvidos também estão relacionados à Covid-19, potencializando o risco de morte para as pessoas afetadas.

Um segundo fator de preocupação é que a população majoritariamente afetada por esta hemoglobinopatia genética está entre os grupos mais vulneráveis economicamente e que enfrentam dificuldades no diagnóstico e complicações no acompanhamento e tratamento da doença, que apesar de gratuito pelo SUS, não é fácil nem barato, devido à necessidade de internações hospitalares e de busca por atendimento de urgência e emergência que a doença exige com frequência, efeitos que se conectam através dos Determinantes Sociais em Saúde (DSS) aos índices de emprego, renda, educação e acesso à saúde que são menores em relação aos brancos, chegando a 44% no que diz respeito à diferença salarial, usando apenas a categoria econômica em termos comparativos (IBGE, 2019).

Considerando que os leitos e vagas nos hospitais públicos e privados estão beirando a falência na maioria das capitais e outros municípios do país, dificultando ainda mais a acessibilidade e o acolhimento diferenciado, as pessoas com doença falciforme têm sido enquadradas como grupo de risco (Hemominas, 2020).

O terceiro aspecto está relacionado ao Quesito Raça/Cor. Embora esse seja um indicador oficial do IBGE (2017) em relação à diversidade sociorracial brasileira e haja provisão legal para sua utilização no âmbito dos serviços de saúde (Portaria 344 de 01/02/2017 do Ministério da Saúde), até fevereiro não constava nos registros oficiais da pandemia da Covid-19 esse campo ou a obrigatoriedade do seu preenchimento e ainda em abril os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde não eram desagregados segundo raça/cor.

Mesmo depois da obrigatoriedade, permanece a subnotificação, uma vez que para muitos profissionais de saúde este dado não é considerado relevante.

Pessoas negras e pardas somam 54,8% das mortes por covid-19 registradas no Brasil de acordo com o site UOL
Foto: Reprodução/Getty Images


No entanto, o retrato da pandemia nos EUA deixou claro o impacto do racismo na saúde uma vez que, embora os negros componham a minoria da população norte-americana (cerca de 30%), são proporcionalmente a maioria dos mortos pela SARS-Cov-2 (cerca de 70%).

No Brasil, os impactos do racismo na saúde, embora reconhecidos, ainda tem recebido pouca atenção (Cunha, 2013). É fato que ser preto ou pardo aqui aumenta substancialmente seu risco de morte, em especial, no caso da população diagnosticada com doença falciforme e/ou demais doenças crônicas, como: hipertensão arterial, diabetes, enfermidades coronarianas e renais, que ocorrem com alta prevalência na população negra.

A quantidade de mortos pretos e pardos com Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAG) quintuplicou no Brasil somente no mês de abril, como indica o site da FIOCRUZ (RJ), um índice alarmante, sendo que as mortes por Covid-19 são subnotificadas em todos os estados e há enorme necessidade de testagem em toda a população brasileira, para que os índices epidemiológicos e de risco de contaminação sejam adequadamente regulados e notificados.

A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, criada em 2007 como Política de Ação Afirmativa da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, ainda é uma realidade distante na maioria dos estados e municípios, em especial, no estado do Pará, no qual nunca foi implantada, ainda que, segundo o censo de 2010, o Pará tenha 76,5% da população autodeclarada preta e parda.

Como há sub registro no estado, não se sabe exatamente como esta população se reflete no número de contágios pela Covid-19, nos índices de óbitos domiciliares, notificados como causas desconhecidas ou naturais, porque os testes de confirmação são praticamente inexistentes em todo o estado, sendo aplicados quase que exclusivamente em pacientes hospitalizados ou em profissionais de saúde sintomáticos.

A carência de exames em larga escala no estado gera outro agravante, pois não apenas os grupos citados precisam de controle epidemiológico, como também o restante da população, com ou sem sintomas, para que possamos ter noção da abrangência da pandemia no Pará, incluindo-se igualmente as populações mais vulneráveis, como: as comunidades quilombolas, ribeirinhas, rurais e os povos indígenas, que para as quais as ações governamentais ainda tem sido tímidas ou nulas.

Atlas da Violência Urbana publicado em 2018, mostrou que 71,5% da população assassinada no Brasil é negra, principalmente nas Regiões Nordeste e Norte, contudo, o caso mais recente que ocorreu no Rio de Janeiro (RJ), do adolescente João Pedro (14 anos), que foi fuzilado dentro de casa pela polícia carioca ou os diversos episódios de chacinas ocorridas nos bairros considerados de linha vermelha da violência na capital paraense nos últimos anos, demonstram que a Covid-19 não é a única preocupação endêmica quando nos referimos à Saúde da População Negra, pois as diversas formas de racismo (pessoal, institucional, estatal e estrutural) também colaboram para o aumento desses índices diariamente, tornando a cor da pele um fator de profundo risco não apenas à saúde, mas ao que se refere à construção de uma cidadania plena, de fato e de direito, que ainda não chegou nas favelas, nas comunidades, nas baixadas e nas áreas periféricas da sociedade brasileira, condições de desumanização que precisam ser resolvidas urgentemente.


Prof. Dr. Hilton P. Silva/Co-Autor

Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA/UFPA; Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia – PPGSAS; Coordenador do Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Ambiente – LEBIOS, Belém, Pará.

 

Prof.ª Dr.ª Ariana Da Silva/Autora

Prof.ª Dr.ª em Bioantropologia; Docente da SEDUC/UEPA; 

Vice-Líder do Grupo de Estudos em Bioantropologia do Pará – GEB/UEPA.

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