O impacto que a pandemia da Covid-19 no
Brasil deve causar
nas populações de mais baixa renda precisa ser
considerado para o planejamento das ações de enfrentamento da doença no Brasil.
É o que acredita o professor Guilherme Werneck, vice-presidente da Abrasco e
professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro e do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Werneck concedeu entrevista para o portal
do Instituto Humanitas Unisinos (IHU On-Line), na última
sexta-feira (27/03), e defendeu ações urgentes para a defesa da vida das
pessoas que vivem em condições de vulnerabilidade – como a distribuição de
águas, para que possam lavar as mãos com frequência, e suporte financeiro.
Confira
a entrevista na íntegra, abaixo:
IHU On-Line – Atualmente,
quais são os desafios do Brasil diante da Covid-19?
Guilherme Werneck – A Covid-19 tem
demonstrado duas feições claras: apresenta uma alta capacidade de disseminação e
uma capacidade mais baixa de causar mortes quando comparada com
outras infecções por coronavírus que provocaram epidemias
recentes (SARS-CoV e MERS-CoV). Essa capacidade de provocar
mortes, também chamada de letalidade (proporção de infectados que
eventualmente morrem), está em torno de 2% para a Covid-19, isto é,
pode-se esperar que mais ou menos duas pessoas morram a cada 100 casos
identificados da doença. O grande problema da Covid-19 é que
o número de casos tem crescido muito rapidamente no mundo. Em cerca de
três meses desde o início da epidemia na China, no final de 2019, já
ocorreram mais de 400 mil casos no mundo e 18 mil mortes, e espera-se que ainda
muitos casos e óbitos venham a ocorrer nos próximos meses.
Evitar
as mortes por Covid-19 é uma das metas mais importantes no momento.
Para isso, duas medidas precisam ser implementadas:
(1)
reforço da noção de “etiqueta respiratória” (proteger a boca ao tossir) e
da higiene das mãos e de objetos em associação com a redução do
contato social para que menos casos ocorram; e
(2)
preparação dos serviços de saúde para prover a atenção
necessária aos casos mais graves que ocorrem prioritariamente
com pessoas idosas e que já têm outras doenças (câncer, diabetes,
doenças do coração, asma, entre outras).
Um
grande desafio que nos está apresentado é justamente buscar meios de evitar que
os serviços de saúde sejam sobrecarregados com um grande volume
de casos que necessitem de hospitalização ou atendimento em unidades de
terapia intensiva. Nesse sentido, a redução do contato social e o
isolamento de casos suspeitos e confirmados de Covid-19 poderão
reduzir a velocidade da epidemia ou “achatar a curva epidêmica”, evitando,
dessa forma, que um número muito grande de casos que necessitem de assistência
médica apareçam simultaneamente, diminuindo assim a sobrecarga dos
serviços de saúde.
IHU On-Line – Como
se imagina que o vírus deve se comportar num país como o Brasil?
Guilherme Werneck – Sabe-se
pouco sobre as características de transmissão da Covid-19 num
contexto como o brasileiro, em que as temperaturas são mais altas e existe
grande desigualdade social, com populações vivendo em condições precárias
de habitação e saneamento, sem acesso constante à água e em situação de
aglomeração. Estudos preliminares sugerem que o coronavírus tenderia a se
espalhar mais lentamente em condições de temperatura e umidade mais elevadas.
Se isso for verdade, seria um alento, pois a epidemia no
Brasil poderia ter um curso menos abrupto. Porém, os dados até agora não
indicam nessa direção e é preciso lembrar que entraremos no outono, estação em
que tradicionalmente há um aumento da transmissão de doenças
respiratórias.
A
questão mais preocupante, e para a qual temos poucos dados, é saber como se
dará a evolução de Covid-19 numa população que vive em condições
precárias e que terá dificuldade de executar de forma apropriada
as recomendações de isolamento social e de higiene das mãos e
objetos. Até agora, a epidemia ainda se caracteriza por estar mais concentrada
em pessoas de classe média ou média alta que retornaram de viagens ao exterior
ou seus contatos. Somente quando a transmissão comunitária
de Covid-19 se estabelecer de forma disseminada, atingindo grande
parte da população que vive em comunidades pobres, é que poderemos avaliar
de forma mais cabal qual será o impacto da pandemia na população
brasileira.
IHU On-Line – Considerando
a desigualdade social que existe no país, que medidas emergenciais poderiam ser
tomadas para enfrentar a pandemia junto àquelas pessoas que vivem aglomeradas em
favelas, ocupações, ou mesmo em situação de rua?
Guilherme Werneck – Uma
questão que tem sido relativamente negligenciada no enfrentamento
da pandemia de Covid-19 é o impacto que ela poderá ter ao
alcançar populações de mais baixa renda. Como disse, até este momento, o
perfil das pessoas acometidas pela Covid-19 no Brasil ainda se
aproxima muito de um perfil de população de classe média ou classe média alta,
porque foram essas pessoas que realizaram viagens para o exterior e lá adquiram
a infecção. Entrando no Brasil, elas desenvolveram a doença e a
transmitiram para seus contatos.
A
partir de agora, a tendência é que essa infecção se espalhe para
a população de baixa renda. As ações que estão sendo preconizadas – embora
sejam necessárias para a redução do impacto da epidemia no Brasil –
são, na maior parte das vezes, medidas que afetam e sobrecarregam
as populações de baixa renda e são muito mais difíceis de serem
implementadas por elas, já que vivem em condições sanitárias inadequadas.
A
cidade do Rio de Janeiro conta com mais de 700 favelas, com mais de
um milhão de pessoas ou cerca de 22% da sua população vivendo nessas regiões.
Como conseguir que as medidas de isolamento social, de afastamento entre
pessoas, lavagem periódica das mãos e a limpeza doméstica consigam ser feitas
em condições sanitárias adequadas, quando as pessoas vivem em lugares
pequenos, pouco arejados, aglomeradas em pequenos cômodos, onde não existe
saneamento básico e onde o acesso à água é reduzido? Soma-se a isso o fato
de que as ações de isolamento social também prejudicam, de certa
forma, esses indivíduos em outro sentido: como vão obter
os recursos financeiros para poderem se alimentar, se estiverem
afastados do trabalho durante a epidemia? É preciso lembrar que boa parte
dessa população vive e trabalha em condição de total informalidade, ou seja, o
afastamento do trabalho implica na não remuneração.
Desafios
O
desafio é como podemos implementar e minimizar o impacto dessas ações
nessas populações. Em primeiro lugar, é necessário que se faça chegar água
a essas comunidades para que as pessoas possam lavar as mãos com mais
frequência. Isso pode ser feito com a entrega de tonéis de água que sejam
utilizados com torneiras, como já ocorre em países africanos. Além disso,
é muito importante que se façam atividades e iniciativas para
doação e chegada de produtos de primeira necessidade até essas populações,
sejam produtos de limpeza, sejam produtos alimentícios, para que elas
possam superar as necessidades que vão encontrar enquanto estiverem afastadas
do trabalho.
Nesse
sentido, as medidas que estão sendo propostas pelos governos federal e
estaduais ou são dúbias ou insuficientes. A proposta de 200 reais para quem
está no Cadastro Único é insuficiente. Esse valor deveria ser pelo
menos o dobro e por mais tempo do que os três meses estipulados. Também deveria
se pensar num suplemento para o Bolsa Família durante os três meses
iniciais dessa epidemia. Iniciativas desse tipo farão chegar recursos a
essas populações e sem dúvida vão abrandar a carga da infecção nessas
comunidades.
IHU On-Line – Qual
é a importância e quais são os ganhos de refletir e agir no enfrentamento da
pandemia a partir da perspectiva da saúde coletiva, que é uma área
multidisciplinar?
Guilherme Werneck – Do
meu ponto de vista, abordar o processo epidêmico e de Covid-19 sob a
ótica da saúde coletiva é essencial neste momento. Isso porque, sendo
um campo de produção de conhecimento científico e de práticas
inerentemente interdisciplinares, a saúde coletiva consegue olhar
para esse processo não como um fenômeno de características somente individuais,
mas como resultado de processos sociais. A saúde coletiva tem
como objetivo, fundamentalmente, entender e estudar o processo de saúde e
doença como um processo social.
Nesse campo
da saúde coletiva operam disciplinas e conhecimentos que interagem para
produzir informação e conhecimento sobre diversos aspectos relacionados ao
processo de saúde e doença e, neste momento, em relação
à epidemia de Covid-19 e todas as suas repercussões na
saúde das pessoas. Por exemplo, a epidemiologia fornece informações sobre como
a epidemia se dissemina, quais são os riscos associados à transmissão, quais
são os fatores de risco associados ao desenvolvimento de formas graves da
doença e avalia também qual é o impacto das intervenções nesse
processo.
Ao
mesmo tempo, as áreas de planejamento e políticas de saúde estão envolvidas na
avaliação e no desenvolvimento de políticas que possam minimizar os efeitos
dessa epidemia, organizando o sistema de saúde, analisando a necessidade
de leitos hospitalares, modificando processos assistenciais, estabelecendo
necessidades econômicas e os custos associados aos serviços de
saúde e formação de recursos humanos, entre outras. Já a área de ciências
sociais e humanas em saúde fornece uma série de elementos para
refletirmos sobre o impacto dessa epidemia e das próprias medidas de
controle na vida cotidiana das pessoas e suas comunidades e as formas como as
pessoas se organizam para lidar com esse problema. Então, nesse sentido, o
olhar da saúde coletiva transcende o olhar da clínica, que tem uma abordagem
individual do adoecimento, para perceber esse processo como algo que resulta de
determinantes sociais, ambientais, históricos e também individuais.
IHU On-Line – Médicos
e cientistas do mundo todo estão testando vários medicamentos já conhecidos
para tentar combater a Covid-19. O que tem sido feito no Brasil neste sentido?
Que pesquisas estão sendo realizadas no momento?
Guilherme Werneck – Existem
iniciativas no mundo inteiro para uma série de testes de
medicamentos que estão disponíveis no mercado ou já estavam em testes para
outras doenças virais. Particularmente, trata-se de medicamentos que foram
testados para Ebola e outros coronavírus, sendo que mais
recentemente tem-se avaliado um possível efeito
da cloroquina/hidroxicloroquina, utilizadas para o tratamento de
malária e outras doenças, como artrite reumatoide e lúpus.
O Brasil tem
uma base científica e tecnológica na área da saúde que habilita os
pesquisadores de diferentes instituições a realizarem essas pesquisas, as quais
são denominadas ensaios clínicos, que são os tipos de estudos realizados
para testar a eficácia de drogas para tratamento de doenças. No momento,
no Brasil, existem alguns grupos organizando estudos para testagem dessas
drogas, com maior interesse pela hidroxicloroquina, mas eles ainda estão
em fase inicial de realização e possivelmente os resultados só começarão a
aparecer daqui a dois meses.
É
importante salientar que pesquisas desse tipo são caras e exigem
uma sólida capacidade tecnológica e científica, e
a comunidade brasileira está preparada para a sua realização.
Estudos desse tipo só podem ser realizados no país hoje porque, no passado,
houve grande investimento em ciência, tecnologia e inovação. Porém, nos últimos
anos, experimentamos uma queda muito importante no financiamento do
sistema nacional de ciência e tecnologia. Por isso hoje temos
muitas dificuldades operacionais, práticas e financeiras, para dar conta
das necessidades com as quais o país se depara, particularmente neste momento,
em que é necessário muito investimento para que consigamos não só
a realização de testes de novos medicamentos, mas o desenvolvimento
de kits para diagnóstico, assim como novas tecnologias para o tratamento e
acompanhamento de pacientes e para a implementação e avaliação de medidas de
controle dessa epidemia no âmbito de serviços de saúde e no âmbito
populacional. Então, é importantíssimo salientar que o financiamento público em
ciência e tecnologia é muito mais do que gasto; é um investimento que o país
precisa tratar como prioridade imediata e para os próximos anos.
IHU On-Line – A
Abrasco subscreveu uma nota das entidades científicas que estão solicitando ao
Ministério de Ciência e Tecnologia a liberação de mais recursos para o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Acerca disso, qual
é a importância de liberar mais recursos para a área e quais são as
dificuldades encontradas entre os cientistas brasileiros para dar seguimento à
realização de novas pesquisas, já que os investimentos na área também foram
reduzidos?
Guilherme Werneck – O Brasil vem
experimentando, nos últimos anos, um decrescimento importantíssimo do
financiamento de pesquisas e já existem evidências internacionais, reiteradas
por várias entidades científicas, de que o investimento em ciência e
tecnologia é o investimento que mais traz retorno social. Então,
deve-se compreender esse financiamento como investimento e não como gasto.
Ocorre que, nos últimos anos, especialmente após a aprovação da PEC do
Teto de Gastos e com as políticas econômicas implementadas pelo novo governo,
houve, paulatinamente, um decréscimo e um represamento do investimento em
pesquisa no Brasil. Sem investimento em pesquisa não se consegue
minimamente estruturar as condições necessárias para o desenvolvimento
econômico e social do país. É justamente nesses momentos de crise, como o
apresentado pela epidemia de Covid-19, que podemos perceber a
importância de um sistema de ciência e tecnologia forte para um país, porque
serão as pesquisas científicas e o desenvolvimento tecnológico que vão poder
dar respostas sobre quais são as melhores formas de enfrentamento da epidemia e
quais as melhores abordagens diagnósticas e terapêuticas para os
indivíduos acometidos.
IHU On-Line – Nos
últimos anos, o senhor tem feito reflexões sobre o sistema de avaliação da
pós-graduação no país, especialmente na área da saúde coletiva, refletindo
sobre como as práticas dos cursos geram resultados desejáveis tanto em relação
à contribuição científica quanto em relação à transformação social. Quais as
perspectivas sobre essa reflexão após a pandemia? As práticas nos cursos de
pós-graduação de saúde coletiva terão que ser repensadas em alguma medida? O
que o senhor tem refletido sobre isso?
Guilherme Werneck – Eu
tenho me preocupado bastante com o sistema nacional de
pós-graduação que, assim como o sistema de ciência e tecnologia e o
Sistema Único de Saúde, tem sofrido grande restrição de recursos.
Esse desfinanciamento pode afetar décadas de investimento de toda a
sociedade para o fortalecimento do sistema nacional de pós-graduação, um
sistema amplo e de qualidade que forma milhares de mestres e doutores
anualmente para atender às demandas científicas e tecnológicas do país.
Especificamente
em relação à saúde coletiva, essa epidemia vai trazer uma série de
aprendizados e, possivelmente, novas oportunidades de pesquisas para os nossos
programas. Primeiro, porque a saúde coletiva tem sido central
no enfrentamento dessa epidemia: por um lado, o campo da epidemiologia tem
trazido informações necessárias para o enfrentamento direto e contenção da
epidemia, com informações sobre como a doença se dissemina, a velocidade
de disseminação, as medidas que poderiam ser utilizadas para reduzir as
taxas de transmissão e também a mortalidade; de outro lado, a área
de planejamento e política de saúde tem avaliado e feito proposições
de como os serviços de saúde precisam se organizar para o atendimento das
demandas que estão sendo colocadas pelo aumento do uso de leitos hospitalares,
particularmente leitos de UTI, necessidade de respiradores e outras
tecnologias para assistência médica; e a área de ciências sociais e humanas vem
sendo cada vez mais solicitada a trabalhar sobre como a sociedade responde, se
organiza e percebe os riscos associados a essa epidemia.
Então,
existem várias repercussões da epidemia no campo social e no campo
psicológico que precisam ser abordadas no âmbito coletivo e que se
expressam de forma mais dramática e com uma carga maior nas populações
mais vulneráveis. Entendo que o chamamento que a saúde coletiva tem tido para o
enfrentamento desta epidemia será uma grande experiência que, sem dúvida,
contribuirá para ajustar e mudar um pouco os rumos dos nossos cursos de
pós-graduação, talvez levando-os a pensar de forma mais crítica a avaliação do
impacto e das intervenções populacionais no campo das emergências em saúde
pública.
IHU On-Line – Que
mudanças essa pandemia poderá gerar na área da saúde e da pesquisa em geral no
Brasil?
Guilherme Werneck – Entendo
que crise é oportunidade e as áreas de saúde e de ciência e
tecnologia no país já demonstraram sua capacidade de dar respostas em
momentos de crise, como aconteceu no período de epidemia de zika. A
questão fundamental que se coloca é que hoje percebemos que as condições para a
realização de pesquisas e para a assistência em saúde no país foram
deterioradas rapidamente pela falta de investimento em ambas as
áreas. Após a crise, após a resposta que as áreas de ciência e tecnologia
e de saúde estão conseguindo prover mesmo nessas condições
desfavoráveis, espero que a sociedade seja capaz de perceber a relevância e a
centralidade dessas áreas para o desenvolvimento social do país.
Cientistas, pesquisadores e profissionais de saúde precisam ser capazes de
dialogar de forma mais clara com a sociedade no sentido de mostrar a
importância do financiamento público dessas atividades para a
própria garantia do bem-estar da população brasileira.
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva