quinta-feira, 23 de abril de 2020

Covid-19, Pobreza e Relações Sociorraciais: O Brasil na Contramão da Humanidade!

Jornal Roteiro de Notícias


Opinião da Prof.ª Dr.ª Ariana da Silva - Bioantropóloga - GEB/UEPA


Foto: GETTY IMAGES
A pandemia do COVID-19 (Corona Virus Disease – 2019) colocou o mundo em xeque. De um dia para o outro, milhões de pessoas de todos os países do mundo foram postas em distanciamento social porque milhares de outros indivíduos começaram a morrer de modo muito rápido, doloroso e com um índice de infecção sem precedentes na História devido ao surpreendente contágio pelo Novo Coronavírus, também classificado como SARS Cov-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus-2), evento biológico que foi oficialmente notificado na China em dezembro de 2019 e, hoje, quatro meses depois, está presente nos diversos continentes.
A evolução humana, associada a hábitos culturais e a um mundo em rede possibilitou a proliferação do vírus, tornando todas as sociedades do Planeta Terra extremamente vulneráveis, iniciando uma gravíssima crise sanitária, com impactos humanitários fortemente enredados pelos choques econômicos que as grandes fortunas reclamavam desde então.
Os efeitos deletérios do COVID-19 apresentam sintomas clínicos como a tosse seca, a febre alta, a ausência de paladar, a perda do olfato, a grave falta de ar e, às vezes, episódios de diarreia e erupções cutâneas, que podem matar rapidamente com a sensação de “afogamento no seco”, tendo ainda um grande índice de contaminação pelo ar através de um simples espirro ou respiração ofegante, com o vírus permanecendo no ambiente por horas e até dias, exigindo de cada um de nós um hábito que deveria ser corriqueiro e democrático: higienizar as mãos com água e sabão, algo simples, mas até o momento a única atitude capaz de dissolver o RNA da célula do vírus e evitar o contágio, com uma corrida desenfreada de laboratórios e universidades de todas as partes do mundo para descobrir uma nova vacina, coquetéis medicamentosos ou antivirais capazes de deter a propagação e letalidade do Coronavírus.
Para além da microevolução do COVID-19, com casos provavelmente associados a zoonoses em contato com humanos, contextos ainda em processos de árduas investigações científicas, o novo vírus englobou várias consequências que precisam ser pontuadas, pois, inicialmente, os grupos humanos que colaboraram com a disseminação do Coronavírus foram os viajantes de classes sociais abastadas, que ao visitar a China e, posteriormente, a Europa, e retornar para os seus respectivos países de origem, levaram consigo na bagagem a cepa da SARS Cov-2, ordenando a todos os demais compatriotas a entrarem em quarentena por tempo ainda não determinado.
O primeiro ponto diz respeito ao número de casos de contágio e de mortes, que tem características de raça e classe diferenciadas, pois de acordo com o Ministério da Saúde, devido o início da manifestação do Coronavírus no Brasil ter sido registrado na população de classe alta, o quesito raça/cor não foi contabilizado de imediato, todavia, segundo o site da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), “a primeira pessoa que morreu no Rio de Janeiro, em decorrência da Covid-19, foi uma doméstica, cuja patroa chegou de viagem dias antes com a doença, não tendo revelado a situação de contágio”.
A doméstica, negra, que viveu e trabalhou durante 20 anos com a patroa displicente, não tinha acesso a plano de saúde. A patroa sobreviveu. Em outra reportagem, como destacado no site Ponte.org“64,5% das vítimas de Covid-19 são brancas e 32,8% são negras, ou seja, enquanto negros representam 1 em cada 4 pessoas internadas pela doença, quando falamos em letalidade, esse número diminui para 1 em cada 3 mortos, segundo o Ministério da Saúde”.
Fica evidente que o nível de vulnerabilidade sociorracial quando matematizamos o COVID-19 demonstra duras desvantagens para a população negra e parda. O vírus ainda está iniciando nas favelas, periferias, quilombos e aldeias indígenas, contudo, não existem testes em massa no Brasil, sendo que os números de mortes por síndromes respiratórias agudas apenas na cidade de São Paulo aumentou 10% no mês de março em relação ao mesmo período do ano passado, causando uma corrida para enterros rápidos, sem direito a velar os corpos e com um ponto de interrogação nos atestados de óbitos, devido à demora que os laboratórios levam para emitir os resultados, não preparados para a demanda exigida, com centenas de pessoas contaminadas e sem um diagnóstico definido, tanto para quem vive quanto para quem morre.
Um segundo ponto a ser destacado é exatamente a vulnerabilidade social em relação ao emprego e a renda de grande parte da população brasileira, pois os números de pessoas desempregadas no Brasil hoje ultrapassam os 12 milhões e somadas as que trabalham na informalidade, que giram em torno de 30 a 35 milhões, compreendem um abismo social alarmante, representando 41% da população que deveria ser economicamente ativa no Brasil.
Os dados são oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em conjunto com o Ministério do Trabalho, subsumidos na atual Gestão Federal, cujos agravamentos da pobreza e da fome elevam o índice de mortalidade do COVID-19 a patamares significativos, sem esquecer que a maioria da população pobre em nossa sociedade também é negra.
Foto: GETTY IMAGES
Uma terceira questão é a do saneamento básico e acesso à água potável e/ou encanada nas cidades de grande e médio porte brasileiras, que são precárias em sua maioria, sem falar nas cidades do interior do país, que além de racionar água, convivem com igarapés e rios poluídos, degradados e sem a menor chance de melhorias, ocasionando uma situação de calamidade pública em relação ao Coronavírus, já que lavar as mãos com água e sabão ou tomar banho pode significar o lugar do status quo que brasileiros de diversas regiões ocupam, o que pode ser traduzido como acesso à vida ou a uma sentença de morte, dependendo da cidade em que se vive, nos bairros de periferia ou de centro, nos morros, baixadas, comunidades ou ruas repletas de indigentes que não tem nenhum tipo de democratização do saneamento básico, da Amazônia ao Sul do Brasil.
Um quarto e último ponto – sem esquecer os demais, que não cabem nessas poucas páginas, como o acesso a informações sobre autocuidado, à internet, à escola de boa qualidade, alimentação adequada, melhoria na distribuição de renda e do PIB, etc. – está relacionado à promoção da saúde pela Rede SUS, que apesar de ser um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo com a universalidade do acesso, tem passado por um dos piores indicadores de perdas de investimentos não apenas na infraestrutura das redes de atenção básica e hospitalar, insumos e materiais de média e alta complexidade, como também tem sofrido sucessivos cortes de verbas de financiamento em ciência e tecnologia, pesquisas científicas, bolsas de estudo de pós-graduação e demais setores que são basilares em uma situação de emergência sanitária global como a que estamos vivenciando agora, uma escala sem precedentes para o país que convive na contramão do entendimento da importância do SUS para cerca de 80% dos brasileiros que dependem dele, já colapsado desde antes da pandemia do COVID-19 por uma total ausência de conhecimento e baseada em interesses escusos como a privatização da saúde aos moldes norte-americanos.
Um total desserviço aos cidadãos que pagam os seus impostos, sendo que ainda temos que conviver com práticas de obscurantismo, de negação da ciência, de mercantilização de vidas humanas e de beatização da cura do Coronavírus por falsos profetas que apenas visam o lucro em detrimento do povo brasileiro.
Apesar de tudo, devemos seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde com resiliência a fim de superar a profunda crise sanitária, moral, política e humanitária que o nosso país atravessa, para, após a quarentena do COVID-19, tomarmos as ruas com a finalidade de exigirmos mais respeito, cidadania de fato e de direito e o fortalecimento dos ideais democráticos brasileiros, momentaneamente tão abalados e desacreditados mundo afora. #FicaEmCasa


Ariana Da Silva - Prof.ª Dr.ª em Bioantropologia; Docente da SEDUC/UEPA; Vice-Líder do Grupo de Estudos em Bioantropologia do Pará – GEB/UEPA.


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Como se dará a evolução de Covid-19 na população que vive em condições precárias? (IHU Online e ABRASCO)



O impacto que a pandemia da Covid-19 no Brasil deve causar nas populações de mais baixa renda precisa ser considerado para o planejamento das ações de enfrentamento da doença no Brasil. É o que acredita o professor Guilherme Werneck, vice-presidente da Abrasco e professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Werneck concedeu entrevista para o portal do Instituto Humanitas Unisinos (IHU On-Line),  na última sexta-feira (27/03), e defendeu ações urgentes para a defesa da vida das pessoas que vivem em condições de vulnerabilidade – como a distribuição de águas, para que possam lavar as mãos com frequência, e suporte financeiro.
Confira a entrevista na íntegra, abaixo:
IHU On-Line – Atualmente, quais são os desafios do Brasil diante da Covid-19?
Guilherme Werneck – A Covid-19 tem demonstrado duas feições claras: apresenta uma alta capacidade de disseminação e uma capacidade mais baixa de causar mortes quando comparada com outras infecções por coronavírus que provocaram epidemias recentes (SARS-CoV e MERS-CoV). Essa capacidade de provocar mortes, também chamada de letalidade (proporção de infectados que eventualmente morrem), está em torno de 2% para a Covid-19, isto é, pode-se esperar que mais ou menos duas pessoas morram a cada 100 casos identificados da doença. O grande problema da Covid-19 é que o número de casos tem crescido muito rapidamente no mundo. Em cerca de três meses desde o início da epidemia na China, no final de 2019, já ocorreram mais de 400 mil casos no mundo e 18 mil mortes, e espera-se que ainda muitos casos e óbitos venham a ocorrer nos próximos meses.
Evitar as mortes por Covid-19 é uma das metas mais importantes no momento. Para isso, duas medidas precisam ser implementadas:
(1) reforço da noção de “etiqueta respiratória” (proteger a boca ao tossir) e da higiene das mãos e de objetos em associação com a redução do contato social para que menos casos ocorram; e
(2) preparação dos serviços de saúde para prover a atenção necessária aos casos mais graves que ocorrem prioritariamente com pessoas idosas e que já têm outras doenças (câncer, diabetes, doenças do coração, asma, entre outras).
Um grande desafio que nos está apresentado é justamente buscar meios de evitar que os serviços de saúde sejam sobrecarregados com um grande volume de casos que necessitem de hospitalização ou atendimento em unidades de terapia intensiva. Nesse sentido, a redução do contato social e o isolamento de casos suspeitos e confirmados de Covid-19 poderão reduzir a velocidade da epidemia ou “achatar a curva epidêmica”, evitando, dessa forma, que um número muito grande de casos que necessitem de assistência médica apareçam simultaneamente, diminuindo assim a sobrecarga dos serviços de saúde.
IHU On-Line – Como se imagina que o vírus deve se comportar num país como o Brasil?
Guilherme Werneck – Sabe-se pouco sobre as características de transmissão da Covid-19 num contexto como o brasileiro, em que as temperaturas são mais altas e existe grande desigualdade social, com populações vivendo em condições precárias de habitação e saneamento, sem acesso constante à água e em situação de aglomeração. Estudos preliminares sugerem que o coronavírus tenderia a se espalhar mais lentamente em condições de temperatura e umidade mais elevadas. Se isso for verdade, seria um alento, pois a epidemia no Brasil poderia ter um curso menos abrupto. Porém, os dados até agora não indicam nessa direção e é preciso lembrar que entraremos no outono, estação em que tradicionalmente há um aumento da transmissão de doenças respiratórias.
A questão mais preocupante, e para a qual temos poucos dados, é saber como se dará a evolução de Covid-19 numa população que vive em condições precárias e que terá dificuldade de executar de forma apropriada as recomendações de isolamento social e de higiene das mãos e objetos. Até agora, a epidemia ainda se caracteriza por estar mais concentrada em pessoas de classe média ou média alta que retornaram de viagens ao exterior ou seus contatos. Somente quando a transmissão comunitária de Covid-19 se estabelecer de forma disseminada, atingindo grande parte da população que vive em comunidades pobres, é que poderemos avaliar de forma mais cabal qual será o impacto da pandemia na população brasileira.
IHU On-Line – Considerando a desigualdade social que existe no país, que medidas emergenciais poderiam ser tomadas para enfrentar a pandemia junto àquelas pessoas que vivem aglomeradas em favelas, ocupações, ou mesmo em situação de rua?
Guilherme Werneck – Uma questão que tem sido relativamente negligenciada no enfrentamento da pandemia de Covid-19 é o impacto que ela poderá ter ao alcançar populações de mais baixa renda. Como disse, até este momento, o perfil das pessoas acometidas pela Covid-19 no Brasil ainda se aproxima muito de um perfil de população de classe média ou classe média alta, porque foram essas pessoas que realizaram viagens para o exterior e lá adquiram a infecção. Entrando no Brasil, elas desenvolveram a doença e a transmitiram para seus contatos.
A partir de agora, a tendência é que essa infecção se espalhe para a população de baixa renda. As ações que estão sendo preconizadas – embora sejam necessárias para a redução do impacto da epidemia no Brasil – são, na maior parte das vezes, medidas que afetam e sobrecarregam as populações de baixa renda e são muito mais difíceis de serem implementadas por elas, já que vivem em condições sanitárias inadequadas.
A cidade do Rio de Janeiro conta com mais de 700 favelas, com mais de um milhão de pessoas ou cerca de 22% da sua população vivendo nessas regiões. Como conseguir que as medidas de isolamento social, de afastamento entre pessoas, lavagem periódica das mãos e a limpeza doméstica consigam ser feitas em condições sanitárias adequadas, quando as pessoas vivem em lugares pequenos, pouco arejados, aglomeradas em pequenos cômodos, onde não existe saneamento básico e onde o acesso à água é reduzido? Soma-se a isso o fato de que as ações de isolamento social também prejudicam, de certa forma, esses indivíduos em outro sentido: como vão obter os recursos financeiros para poderem se alimentar, se estiverem afastados do trabalho durante a epidemia? É preciso lembrar que boa parte dessa população vive e trabalha em condição de total informalidade, ou seja, o afastamento do trabalho implica na não remuneração.
Desafios
O desafio é como podemos implementar e minimizar o impacto dessas ações nessas populações. Em primeiro lugar, é necessário que se faça chegar água a essas comunidades para que as pessoas possam lavar as mãos com mais frequência. Isso pode ser feito com a entrega de tonéis de água que sejam utilizados com torneiras, como já ocorre em países africanos. Além disso, é muito importante que se façam atividades e iniciativas para doação e chegada de produtos de primeira necessidade até essas populações, sejam produtos de limpeza, sejam produtos alimentícios, para que elas possam superar as necessidades que vão encontrar enquanto estiverem afastadas do trabalho.
Nesse sentido, as medidas que estão sendo propostas pelos governos federal e estaduais ou são dúbias ou insuficientes. A proposta de 200 reais para quem está no Cadastro Único é insuficiente. Esse valor deveria ser pelo menos o dobro e por mais tempo do que os três meses estipulados. Também deveria se pensar num suplemento para o Bolsa Família durante os três meses iniciais dessa epidemia. Iniciativas desse tipo farão chegar recursos a essas populações e sem dúvida vão abrandar a carga da infecção nessas comunidades.
IHU On-Line – Qual é a importância e quais são os ganhos de refletir e agir no enfrentamento da pandemia a partir da perspectiva da saúde coletiva, que é uma área multidisciplinar?
Guilherme Werneck – Do meu ponto de vista, abordar o processo epidêmico e de Covid-19 sob a ótica da saúde coletiva é essencial neste momento. Isso porque, sendo um campo de produção de conhecimento científico e de práticas inerentemente interdisciplinares, a saúde coletiva consegue olhar para esse processo não como um fenômeno de características somente individuais, mas como resultado de processos sociais. A saúde coletiva tem como objetivo, fundamentalmente, entender e estudar o processo de saúde e doença como um processo social.
Nesse campo da saúde coletiva operam disciplinas e conhecimentos que interagem para produzir informação e conhecimento sobre diversos aspectos relacionados ao processo de saúde e doença e, neste momento, em relação à epidemia de Covid-19 e todas as suas repercussões na saúde das pessoas. Por exemplo, a epidemiologia fornece informações sobre como a epidemia se dissemina, quais são os riscos associados à transmissão, quais são os fatores de risco associados ao desenvolvimento de formas graves da doença e avalia também qual é o impacto das intervenções nesse processo.
Ao mesmo tempo, as áreas de planejamento e políticas de saúde estão envolvidas na avaliação e no desenvolvimento de políticas que possam minimizar os efeitos dessa epidemia, organizando o sistema de saúde, analisando a necessidade de leitos hospitalares, modificando processos assistenciais, estabelecendo necessidades econômicas e os custos associados aos serviços de saúde e formação de recursos humanos, entre outras. Já a área de ciências sociais e humanas em saúde fornece uma série de elementos para refletirmos sobre o impacto dessa epidemia e das próprias medidas de controle na vida cotidiana das pessoas e suas comunidades e as formas como as pessoas se organizam para lidar com esse problema. Então, nesse sentido, o olhar da saúde coletiva transcende o olhar da clínica, que tem uma abordagem individual do adoecimento, para perceber esse processo como algo que resulta de determinantes sociais, ambientais, históricos e também individuais.
IHU On-Line – Médicos e cientistas do mundo todo estão testando vários medicamentos já conhecidos para tentar combater a Covid-19. O que tem sido feito no Brasil neste sentido? Que pesquisas estão sendo realizadas no momento?
Guilherme Werneck – Existem iniciativas no mundo inteiro para uma série de testes de medicamentos que estão disponíveis no mercado ou já estavam em testes para outras doenças virais. Particularmente, trata-se de medicamentos que foram testados para Ebola e outros coronavírus, sendo que mais recentemente tem-se avaliado um possível efeito da cloroquina/hidroxicloroquina, utilizadas para o tratamento de malária e outras doenças, como artrite reumatoide e lúpus.
O Brasil tem uma base científica e tecnológica na área da saúde que habilita os pesquisadores de diferentes instituições a realizarem essas pesquisas, as quais são denominadas ensaios clínicos, que são os tipos de estudos realizados para testar a eficácia de drogas para tratamento de doenças. No momento, no Brasil, existem alguns grupos organizando estudos para testagem dessas drogas, com maior interesse pela hidroxicloroquina, mas eles ainda estão em fase inicial de realização e possivelmente os resultados só começarão a aparecer daqui a dois meses.
É importante salientar que pesquisas desse tipo são caras e exigem uma sólida capacidade tecnológica e científica, e a comunidade brasileira está preparada para a sua realização. Estudos desse tipo só podem ser realizados no país hoje porque, no passado, houve grande investimento em ciência, tecnologia e inovação. Porém, nos últimos anos, experimentamos uma queda muito importante no financiamento do sistema nacional de ciência e tecnologia. Por isso hoje temos muitas dificuldades operacionais, práticas e financeiras, para dar conta das necessidades com as quais o país se depara, particularmente neste momento, em que é necessário muito investimento para que consigamos não só a realização de testes de novos medicamentos, mas o desenvolvimento de kits para diagnóstico, assim como novas tecnologias para o tratamento e acompanhamento de pacientes e para a implementação e avaliação de medidas de controle dessa epidemia no âmbito de serviços de saúde e no âmbito populacional. Então, é importantíssimo salientar que o financiamento público em ciência e tecnologia é muito mais do que gasto; é um investimento que o país precisa tratar como prioridade imediata e para os próximos anos.
IHU On-Line – A Abrasco subscreveu uma nota das entidades científicas que estão solicitando ao Ministério de Ciência e Tecnologia a liberação de mais recursos para o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Acerca disso, qual é a importância de liberar mais recursos para a área e quais são as dificuldades encontradas entre os cientistas brasileiros para dar seguimento à realização de novas pesquisas, já que os investimentos na área também foram reduzidos?
Guilherme Werneck – O Brasil vem experimentando, nos últimos anos, um decrescimento importantíssimo do financiamento de pesquisas e já existem evidências internacionais, reiteradas por várias entidades científicas, de que o investimento em ciência e tecnologia é o investimento que mais traz retorno social. Então, deve-se compreender esse financiamento como investimento e não como gasto. Ocorre que, nos últimos anos, especialmente após a aprovação da PEC do Teto de Gastos e com as políticas econômicas implementadas pelo novo governo, houve, paulatinamente, um decréscimo e um represamento do investimento em pesquisa no Brasil. Sem investimento em pesquisa não se consegue minimamente estruturar as condições necessárias para o desenvolvimento econômico e social do país. É justamente nesses momentos de crise, como o apresentado pela epidemia de Covid-19, que podemos perceber a importância de um sistema de ciência e tecnologia forte para um país, porque serão as pesquisas científicas e o desenvolvimento tecnológico que vão poder dar respostas sobre quais são as melhores formas de enfrentamento da epidemia e quais as melhores abordagens diagnósticas e terapêuticas para os indivíduos acometidos.
IHU On-Line – Nos últimos anos, o senhor tem feito reflexões sobre o sistema de avaliação da pós-graduação no país, especialmente na área da saúde coletiva, refletindo sobre como as práticas dos cursos geram resultados desejáveis tanto em relação à contribuição científica quanto em relação à transformação social. Quais as perspectivas sobre essa reflexão após a pandemia? As práticas nos cursos de pós-graduação de saúde coletiva terão que ser repensadas em alguma medida? O que o senhor tem refletido sobre isso?
Guilherme Werneck – Eu tenho me preocupado bastante com o sistema nacional de pós-graduação que, assim como o sistema de ciência e tecnologia e o Sistema Único de Saúde, tem sofrido grande restrição de recursos. Esse desfinanciamento pode afetar décadas de investimento de toda a sociedade para o fortalecimento do sistema nacional de pós-graduação, um sistema amplo e de qualidade que forma milhares de mestres e doutores anualmente para atender às demandas científicas e tecnológicas do país.
Especificamente em relação à saúde coletiva, essa epidemia vai trazer uma série de aprendizados e, possivelmente, novas oportunidades de pesquisas para os nossos programas. Primeiro, porque a saúde coletiva tem sido central no enfrentamento dessa epidemia: por um lado, o campo da epidemiologia tem trazido informações necessárias para o enfrentamento direto e contenção da epidemia, com informações sobre como a doença se dissemina, a velocidade de disseminação, as medidas que poderiam ser utilizadas para reduzir as taxas de transmissão e também a mortalidade; de outro lado, a área de planejamento e política de saúde tem avaliado e feito proposições de como os serviços de saúde precisam se organizar para o atendimento das demandas que estão sendo colocadas pelo aumento do uso de leitos hospitalares, particularmente leitos de UTI, necessidade de respiradores e outras tecnologias para assistência médica; e a área de ciências sociais e humanas vem sendo cada vez mais solicitada a trabalhar sobre como a sociedade responde, se organiza e percebe os riscos associados a essa epidemia.
Então, existem várias repercussões da epidemia no campo social e no campo psicológico que precisam ser abordadas no âmbito coletivo e que se expressam de forma mais dramática e com uma carga maior nas populações mais vulneráveis. Entendo que o chamamento que a saúde coletiva tem tido para o enfrentamento desta epidemia será uma grande experiência que, sem dúvida, contribuirá para ajustar e mudar um pouco os rumos dos nossos cursos de pós-graduação, talvez levando-os a pensar de forma mais crítica a avaliação do impacto e das intervenções populacionais no campo das emergências em saúde pública.
IHU On-Line – Que mudanças essa pandemia poderá gerar na área da saúde e da pesquisa em geral no Brasil?
Guilherme Werneck – Entendo que crise é oportunidade e as áreas de saúde e de ciência e tecnologia no país já demonstraram sua capacidade de dar respostas em momentos de crise, como aconteceu no período de epidemia de zika. A questão fundamental que se coloca é que hoje percebemos que as condições para a realização de pesquisas e para a assistência em saúde no país foram deterioradas rapidamente pela falta de investimento em ambas as áreas. Após a crise, após a resposta que as áreas de ciência e tecnologia e de saúde estão conseguindo prover mesmo nessas condições desfavoráveis, espero que a sociedade seja capaz de perceber a relevância e a centralidade dessas áreas para o desenvolvimento social do país. Cientistas, pesquisadores e profissionais de saúde precisam ser capazes de dialogar de forma mais clara com a sociedade no sentido de mostrar a importância do financiamento público dessas atividades para a própria garantia do bem-estar da população brasileira.


ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva

terça-feira, 7 de abril de 2020

Estudo conclui que Coronavírus SARS-CoV-2 só pode ter evoluído naturalmente

Cientistas provam que novo coronavírus 
evoluiu naturalmente (Foto: Divulgação)

Análise do genoma do vírus mostra que não é possível que o agente causador da Covid-19 tenha sido produzido em laboratório ou manipulado de outra forma

      REDAÇÃO GALILEU
18 MAR 2020 - 12H56 ATUALIZADO EM 18 MAR 2020 - 12H56


O novo coronavírus SARS-CoV-2 surgiu como resultado de uma evolução natural, segundo um artigo publicado na Nature Medicine. A análise de dados públicos da sequência do genoma do vírus causador da Covid-19 comprovou que o organismo não foi produzido em laboratório ou manipulado de outra forma.

"Ao comparar os dados disponíveis da sequência do genoma para cepas conhecidas de outros coronavírus, pudemos determinar firmemente que o SARS-CoV-2 se originou a partir de processos naturais", disse Kristian Andersen, um dos autores do estudo, em comunicado.

Os cientistas analisaram o modelo genético de proteínas spike, um tipo de "espinho" que fica do lado de fora do vírus e é usado para agarrar e penetrar nas paredes externas das células de humanos e animais. Mais especificamente, a equipe se concentrou em duas características importantes da proteína spike: o domínio de ligação ao receptor (RBD, na sigla em inglês), espécie de "gancho" que prende as células hospedeiras ao organismo, e o local da clivagem, que funciona como um "abridor de latas" molecular, permitindo que o vírus se abra e entre nas células hospedeiras.

Os cientistas descobriram que o RBD das proteínas spike do SARS-CoV-2 evoluiu para atingir o ACE2, um receptor localizado no exterior das células humanas envolvido na regulação da pressão arterial. Segundo a equipe, a proteína é tão eficaz na ligação com as células humanas que ela só pode ser resultado da evolução natural.

Essa evidência é apoiada por dados da "espinha dorsal" do SARS-CoV-2 — sua estrutura molecular geral. Para os especialistas, se alguém estivesse tentando projetar um novo coronavírus como patógeno, ele o teria construído a partir da espinha dorsal de um vírus já conhecido por causar doenças. O novo coronavírus, entretanto, difere substancialmente dos microrganismos já conhecidos — e se assemelha principalmente a vírus encontrados em morcegos e pangolins"Essas duas características do vírus, as mutações na porção RBD da proteína spike e sua espinha dorsal distinta descartam a manipulação de laboratório como uma origem potencial para o SARS-CoV-2", afirmou Andersen.

A origem do novo coronavírus


Com base em sua análise de sequenciamento genético, Andersen e seus colaboradores concluíram que há dois cenários possíveis que explicam as origens do SARS-CoV-2. No primeiro, o vírus evoluiu para seu estado patogênico atual por meio da seleção natural de um hospedeiro não humano e, então, pulou para os seres humanos. No outro cenário, uma versão não patogênica do vírus saltou de um hospedeiro animal para o homem e depois evoluiu para seu estado patogênico atual na população humana.

Por enquanto, os especialistas dizem que é difícil determinar como, de fato, o novo coronavírus surgiu. Ainda assim, descobrir que ele é resultado da evolução natural é muito importante "para trazer uma visão baseada em evidências aos rumores que circulam sobre as origens do vírus (SARS-CoV -2) causandor da Covid-19", disse Josie Golding, coautora do estudo.