quinta-feira, 23 de abril de 2020

Covid-19, Pobreza e Relações Sociorraciais: O Brasil na Contramão da Humanidade!

Jornal Roteiro de Notícias


Opinião da Prof.ª Dr.ª Ariana da Silva - Bioantropóloga - GEB/UEPA


Foto: GETTY IMAGES
A pandemia do COVID-19 (Corona Virus Disease – 2019) colocou o mundo em xeque. De um dia para o outro, milhões de pessoas de todos os países do mundo foram postas em distanciamento social porque milhares de outros indivíduos começaram a morrer de modo muito rápido, doloroso e com um índice de infecção sem precedentes na História devido ao surpreendente contágio pelo Novo Coronavírus, também classificado como SARS Cov-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus-2), evento biológico que foi oficialmente notificado na China em dezembro de 2019 e, hoje, quatro meses depois, está presente nos diversos continentes.
A evolução humana, associada a hábitos culturais e a um mundo em rede possibilitou a proliferação do vírus, tornando todas as sociedades do Planeta Terra extremamente vulneráveis, iniciando uma gravíssima crise sanitária, com impactos humanitários fortemente enredados pelos choques econômicos que as grandes fortunas reclamavam desde então.
Os efeitos deletérios do COVID-19 apresentam sintomas clínicos como a tosse seca, a febre alta, a ausência de paladar, a perda do olfato, a grave falta de ar e, às vezes, episódios de diarreia e erupções cutâneas, que podem matar rapidamente com a sensação de “afogamento no seco”, tendo ainda um grande índice de contaminação pelo ar através de um simples espirro ou respiração ofegante, com o vírus permanecendo no ambiente por horas e até dias, exigindo de cada um de nós um hábito que deveria ser corriqueiro e democrático: higienizar as mãos com água e sabão, algo simples, mas até o momento a única atitude capaz de dissolver o RNA da célula do vírus e evitar o contágio, com uma corrida desenfreada de laboratórios e universidades de todas as partes do mundo para descobrir uma nova vacina, coquetéis medicamentosos ou antivirais capazes de deter a propagação e letalidade do Coronavírus.
Para além da microevolução do COVID-19, com casos provavelmente associados a zoonoses em contato com humanos, contextos ainda em processos de árduas investigações científicas, o novo vírus englobou várias consequências que precisam ser pontuadas, pois, inicialmente, os grupos humanos que colaboraram com a disseminação do Coronavírus foram os viajantes de classes sociais abastadas, que ao visitar a China e, posteriormente, a Europa, e retornar para os seus respectivos países de origem, levaram consigo na bagagem a cepa da SARS Cov-2, ordenando a todos os demais compatriotas a entrarem em quarentena por tempo ainda não determinado.
O primeiro ponto diz respeito ao número de casos de contágio e de mortes, que tem características de raça e classe diferenciadas, pois de acordo com o Ministério da Saúde, devido o início da manifestação do Coronavírus no Brasil ter sido registrado na população de classe alta, o quesito raça/cor não foi contabilizado de imediato, todavia, segundo o site da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), “a primeira pessoa que morreu no Rio de Janeiro, em decorrência da Covid-19, foi uma doméstica, cuja patroa chegou de viagem dias antes com a doença, não tendo revelado a situação de contágio”.
A doméstica, negra, que viveu e trabalhou durante 20 anos com a patroa displicente, não tinha acesso a plano de saúde. A patroa sobreviveu. Em outra reportagem, como destacado no site Ponte.org“64,5% das vítimas de Covid-19 são brancas e 32,8% são negras, ou seja, enquanto negros representam 1 em cada 4 pessoas internadas pela doença, quando falamos em letalidade, esse número diminui para 1 em cada 3 mortos, segundo o Ministério da Saúde”.
Fica evidente que o nível de vulnerabilidade sociorracial quando matematizamos o COVID-19 demonstra duras desvantagens para a população negra e parda. O vírus ainda está iniciando nas favelas, periferias, quilombos e aldeias indígenas, contudo, não existem testes em massa no Brasil, sendo que os números de mortes por síndromes respiratórias agudas apenas na cidade de São Paulo aumentou 10% no mês de março em relação ao mesmo período do ano passado, causando uma corrida para enterros rápidos, sem direito a velar os corpos e com um ponto de interrogação nos atestados de óbitos, devido à demora que os laboratórios levam para emitir os resultados, não preparados para a demanda exigida, com centenas de pessoas contaminadas e sem um diagnóstico definido, tanto para quem vive quanto para quem morre.
Um segundo ponto a ser destacado é exatamente a vulnerabilidade social em relação ao emprego e a renda de grande parte da população brasileira, pois os números de pessoas desempregadas no Brasil hoje ultrapassam os 12 milhões e somadas as que trabalham na informalidade, que giram em torno de 30 a 35 milhões, compreendem um abismo social alarmante, representando 41% da população que deveria ser economicamente ativa no Brasil.
Os dados são oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em conjunto com o Ministério do Trabalho, subsumidos na atual Gestão Federal, cujos agravamentos da pobreza e da fome elevam o índice de mortalidade do COVID-19 a patamares significativos, sem esquecer que a maioria da população pobre em nossa sociedade também é negra.
Foto: GETTY IMAGES
Uma terceira questão é a do saneamento básico e acesso à água potável e/ou encanada nas cidades de grande e médio porte brasileiras, que são precárias em sua maioria, sem falar nas cidades do interior do país, que além de racionar água, convivem com igarapés e rios poluídos, degradados e sem a menor chance de melhorias, ocasionando uma situação de calamidade pública em relação ao Coronavírus, já que lavar as mãos com água e sabão ou tomar banho pode significar o lugar do status quo que brasileiros de diversas regiões ocupam, o que pode ser traduzido como acesso à vida ou a uma sentença de morte, dependendo da cidade em que se vive, nos bairros de periferia ou de centro, nos morros, baixadas, comunidades ou ruas repletas de indigentes que não tem nenhum tipo de democratização do saneamento básico, da Amazônia ao Sul do Brasil.
Um quarto e último ponto – sem esquecer os demais, que não cabem nessas poucas páginas, como o acesso a informações sobre autocuidado, à internet, à escola de boa qualidade, alimentação adequada, melhoria na distribuição de renda e do PIB, etc. – está relacionado à promoção da saúde pela Rede SUS, que apesar de ser um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo com a universalidade do acesso, tem passado por um dos piores indicadores de perdas de investimentos não apenas na infraestrutura das redes de atenção básica e hospitalar, insumos e materiais de média e alta complexidade, como também tem sofrido sucessivos cortes de verbas de financiamento em ciência e tecnologia, pesquisas científicas, bolsas de estudo de pós-graduação e demais setores que são basilares em uma situação de emergência sanitária global como a que estamos vivenciando agora, uma escala sem precedentes para o país que convive na contramão do entendimento da importância do SUS para cerca de 80% dos brasileiros que dependem dele, já colapsado desde antes da pandemia do COVID-19 por uma total ausência de conhecimento e baseada em interesses escusos como a privatização da saúde aos moldes norte-americanos.
Um total desserviço aos cidadãos que pagam os seus impostos, sendo que ainda temos que conviver com práticas de obscurantismo, de negação da ciência, de mercantilização de vidas humanas e de beatização da cura do Coronavírus por falsos profetas que apenas visam o lucro em detrimento do povo brasileiro.
Apesar de tudo, devemos seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde com resiliência a fim de superar a profunda crise sanitária, moral, política e humanitária que o nosso país atravessa, para, após a quarentena do COVID-19, tomarmos as ruas com a finalidade de exigirmos mais respeito, cidadania de fato e de direito e o fortalecimento dos ideais democráticos brasileiros, momentaneamente tão abalados e desacreditados mundo afora. #FicaEmCasa


Ariana Da Silva - Prof.ª Dr.ª em Bioantropologia; Docente da SEDUC/UEPA; Vice-Líder do Grupo de Estudos em Bioantropologia do Pará – GEB/UEPA.


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