quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Reflexões Sobre o Trabalho Feminino na Era da Uberização da Economia

Semana passada nos deparamos com a foto de Lada Koroleva, 19 anos, com suas duas filhas em um metrô da Rússia. Nada de anormal, se não fosse uma caixa transportadora em suas costas, indicando que ela está trabalhando e, ao mesmo tempo, amamentando, cuidando e levando as suas filhas com ela. Não é a primeira foto desse tipo, nem de uma história que não seja comum, onde se mostra a vida de mulheres que tem que levar seus filhos aos seus trabalhos para prover o sustento em plena pandemia. Sem mencionar o triste caso da empregada doméstica Mirtes Santana ocorrido em junho deste ano, que perdeu o filho em um trágico acidente ao cair do prédio de luxo após deixá-lo com a patroa. Episódios como o de Mirtes e de seus filhos em empregos são corriqueiros. Em outubro de 2019, também conhecemos uma venezuelana que se mudou para a Argentina e foi flagrada com sua bebê no colo com outra caixa transportadora nas costas, em uma bicicleta. Mais tarde, ela foi encontrada e afirmou que ia deixar a filha na creche e, depois, ia trabalhar, mas assegurou que não trabalha com a bebê, como pensariam na foto, que viralizou.



Afora essas histórias que sabemos, lemos e testemunhamos ao vivo, o que mais chama a atenção, além da romantização dessas situações e de outras formas capitalistas de exploração, são os comentários na  internet, sempre chocantes, com o dito cancelamento virtual, que vai de um extremo de amor ao próximo ao ódio simples e declarado: 

“coitada”, “guerreira”, “parabéns”, “exemplo para todas” ou, então, “quem pariu que cuide”, “só tá assim porque quer” e, o pior e mais machista de todos, advindo, inclusive, de algumas mulheres: “quem mandou procurar filho?”. 

Entretanto, como antropólogas, somos curiosas e sabemos que o machismo e o patriarcalismo que demarcam o preconceito contra as mulheres são sintomáticos em nossa sociedade atual, que é extremamente conservadora, elitista, branca, pseudo-religiosa e que ainda impõe um papel hierárquico e secundário ao gênero feminino. 

A uberização do trabalho não é medida apenas pelo trabalho feminino, todavia, tal precarização nos atinge de modo significativo devido a total ausência de direitos trabalhistas, plano de saúde, garantia de férias, horas extras, décimo terceiro salário, dias remunerados em caso de doença, auxílio alimentação, creche, salário família, auxílio maternidade, FGTS e demais arduamente conquistadas ao longo dos anos de movimentos sindicais e feministas que conseguiram garantir à mulher o lugar em espaços de poder e disputa por uma vaga no mercado de trabalho, mas que, com o crescimento do neoliberalismo e do enfraquecimento do Estado Brasileiro nos últimos anos enquanto elemento agregador e garantidor de empregabilidade, a terceirização da economia trouxe a insegurança, o aumento da jornada de trabalho e a pauperização da mão-de-obra pelo chamado “mito do empreendedorismo”, que apenas ressalta os altos índices de desigualdade não apenas salarial, que historicamente a mulher ocupa no mercado, com os fixos 30% a menos na renda mensal em relação aos homens, como também, alargou o fosso na questão de gênero, com as mulheres trabalhando até quatro vezes mais que os homens em termos práticos: no emprego ou “bico”, na casa, com os filhos e nas relações conjugais e de auto cuidado.


Nós, mulheres, somos pressionadas por tudo e por todos/as, em diversos sentidos:

no trabalho, no comportamento, na sexualidade, no cuidar da casa e dos filhos, em dar atenção para os maridos e companheiros/as, em finalizar as tarefas acadêmicas, em vigiar o corpo, para não engordar e manter um padrão magro, totalmente fora do biotipo das brasileiras, além de conservar a mente equilibrada, as contas, a lição dos filhos e o controle de energia sobre si mesmas.

Na atual pandemia da COVID-19, milhões de brasileiros e brasileiras perderam os seus empregos, suas rendas fixas e, para piorar, muitos não receberam o auxílio emergencial, por inúmeros motivos, todavia, as mulheres-mães que tinham em alguns casos as redes de apoio enquanto iam aos seus trabalhos, simplesmente as perderam.

As redes de apoio eram formadas por seus familiares mais próximos, avós, tias, vizinhas, parentes, como também por instituições como creches e escolas e que, nesse momento, precisam ficar isolados por serem pessoas do grupo de risco ou devido ao forçoso, mas necessário, fechamento de espaços de aprendizado coletivo para evitar a proliferação da pandemia.

Todo esse cenário implica em estafa mental, física e psicológica, porque, ao longo da nossa educação houve a fixação dos papéis sexuais, ou seja, cada sexo tem uma forma de agir, uma tarefa a fazer e uma responsabilidade para assumir.

A menina foi sempre ensinada a brincar de boneca, cuidar da casa, lavar as roupas, a cozinhar e cuidar dos irmãos pequenos. Nossos brinquedos foram panelinhas, fogões, utensílios domésticos e bonecas que pareciam miniaturas de gente: como trocar fraldas, dar papinha, limpar o cocô. Para os meninos: bola, rua, brinquedos de engenheiro, jogos de guerra, papéis de liderança.

Foi “naturalizado” de modo coercitivo, portanto, que seja responsabilidade da mulher o cuidado com o lar, a perfeição do corpo e o recato e se, em algum momento isso não for realizado, nos culpamos e nos sentimos incompletas ou cometendo erros .

Durante a pandemia viramos malabaristas com a primeira, segunda, terceira e quarta jornadas: temos que conciliar o lar com o emprego, que virou online, remoto, home office, com as mídias, que já teríamos que ter aprendido como funciona como que por osmose, tendo que controlar tudo corretamente, além dos filhos e de nossas próprias vivências – a eterna procura por uma mulher nota 1000! No entanto, isso não é possível! Somos feitas de carne e osso, temos limites. Diante disso, é importante que todos e todas participem das tarefas domésticas, intelectuais, morais e sociais e parem de se comportar como o marido da Lada que “passa o dia inteiro jogando videogame”, segundo as palavras dela. Desse modo, podemos melhorar as relações de gênero e (des)igualdade, além de lutar por melhores condições de trabalho, saúde e oportunidades para as mulheres.

Texto completo disponível em: 

terça-feira, 4 de agosto de 2020

O Enfraquecimento das Políticas Públicas em Tempos de COVID-19 e a Saúde Indígena na Amazônia - Jornal Roteiro de Notícias Online

O Enfraquecimento das Políticas Públicas em Tempos de COVID-19 e a Saúde Indígena na Amazônia

Jornal Roteiro de Notícias Online 4 de agosto de 2020

A sociedade brasileira passa por um momento de intensos desafios políticos e epidemiológicos. Em particular, há um desinteresse estatal para com as populações indígenas e grupos tradicionais, que se encontram em situação de violação dos seus direitos diante da Covid-19. 

Mesmo antes da pandemia, considerando os diversos contextos de destruição da Floresta Amazônica, queimadas coordenadas por especuladores de terras, poluição de rios com produtos químicos de mineradoras, assassinatos de lideranças indígenas sem solução, ausência de fiscalização por parte dos órgãos ambientais e demissão daqueles que tentam conter a ação de garimpeiros, grileiros e pistoleiros, se desenvolve um cenário que, desde o “Milagre Brasileiro”, na década de 70, vinha mudando na região. 

Apenas nos anos de 2017 e 2018 houve um aumento de 124% no desmatamento ilegal dentro de Terras Indígenas. 

O desmatamento nas Terras Indígenas (TIs) na Amazônia continua concentrado em poucos territórios, mas acelerou no último ano (ISA/INPE, 2018).

Devido ao racismo estrutural, a situação de pobreza e precariedade de saúde entre os povos indígenas do Brasil é tão vergonhosa quanto antiga. Um exemplo claro é a ordem do Governo Federal de “não demarcar 1 cm de terra para indígenas” desde o começo da atual gestão, uma das únicas promessas de campanha até agora integralmente cumprida. 

Em particular, na Região Norte, que concentra cerca de 90% das populações originárias, a ausência proposital do Estado se manifesta com o elevado número de mortes e contaminações pela Covid-19 em territórios indígenas. Até a última semana de julho já se contabilizava cerca de 600 mortes no país, concentradas principalmente no Amazonas e no Pará. 

Outro sinal do grave descaso governamental diz respeito à chamada “nova febre do ouro”, que surgiu com o relaxamento das ações de fiscalização e controle por parte dos órgãos competentes para impedir que povos indígenas como os Yanomami e os Yekuana, entre outros, sejam diretamente afetados em suas terras na fronteira com a Venezuela, onde a presença de mais de 20 mil garimpeiros “tornou-se sinônimo de violência, prostituição, doença, desmatamento e poluição”, conforme declarou Dario Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), filho de Davi Kopenawa, um dos mais antigos líderes indígenas do país. 

Uma imagem emblemática recente do desconhecimento e descaso com as culturas indígenas na assistência à saúde é a do indígena Yanomami tentando usar a máscara para proteção contra a Covid-19, feita por Joédson Alves, em Roraima. O Ministério da Saúde (MS), aparentemente, não considera relevantes para o controle da pandemia os modos de vida, adornos, simbologias religiosas, ritos espirituais, mitologias, etnoconhecimento e tradições culturais dos indivíduos e comunidades indígenas, o que tem contribuído para os índices epidemiológicos alarmantes e, até agora, sem medidas adequadas para amenizar o avanço da pandemia, restando apenas ao exército e prefeituras, com iniciativas emergenciais em saúde nos municípios mais afetados, a providência de alguma assistência aos locais mais distantes, conforme as suas possibilidades. 

Indígena Yanomami tenta vestir máscara de proteção em Alto Alegre (RR). Imagem: Joédson Alves/EDE. Disponível em: UOL 


No Estado do Pará, os indígenas tem recebido pouca assistência por parte dos Governos Federal e Estadual, o que contribui para o descontrole da pandemia entre diversas etnias, havendo registro de mortes pela Covid-19 nos Aikewara, Assurini, Borari, Gavião, Kayapó, Tupinambá e Xikrin, sendo que outros seguem ameaçados pelo risco de contágio, pela falta de assistência médica e pela insegurança alimentar. 

A morte dos mais idosos tem deixado marcas profundas nas diversas etnias pela importância dos anciãos na organização e preservação das línguas, condutas, cosmologias, relações de parentesco e liderança das sociedades indígenas. 

Recentemente, o cacique Raoni Metuktire, do Parque Indígena do Xingu (MT), entrou em depressão e precisou ser internado após a perda de sua esposa, Bekwykà Metuktire. Ela morreu por infarto após demora em buscar atendimento a tempo por medo da contaminação pela Covid-19 na cidade. 

Apesar dos esforços dos agentes da FUNAI, o órgão responsável pela política indigenista tem enfrentado dificuldades de cumprir suas atribuições, sendo hoje fortemente influenciado por representantes ruralistas e pentecostais, que iniciaram uma verdadeira “caçada a comunistas e ongueiros” e mesmo a alguns servidores mais antigos; um contexto que confunde ideologia com política e enfraquece, sobremaneira, a atuação local e a respeitabilidade internacional do órgão. 

A FUNAI tem sido abruptamente descaracterizada no último ano e meio, com uma verdadeira “postura colonial” em relação às populações originárias do Brasil, ocasionando prejuízo a diversas políticas públicas como a demarcação de terras indígenas, o reconhecimento de territórios ancestrais, o apoio à saúde e educação indígenas e demais políticas de inclusão social anteriormente sancionadas, com a defesa, inclusive, de autorização para exploração de garimpos em terras indígenas, postura incompatível com sua função. 

De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), em sua Plataforma de Monitoramento da Situação Indígena na Pandemia do Novo Coronavírus (Covid-19), junto ao Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena, no Brasil, o número de indígenas infectados atualmente é cerca de 18.854, que testaram positivo para Covid-19, com 582 mortes e 145 povos atingidos, estatísticas superiores às anunciadas pelos dados oficiais, pois, além de subnotificação e carência de testagem nas aldeias, o MS e a FUNAI não contabilizam como indígenas as mortes e os contágios dos não-aldeados, que vivem nas cidades, o que amplia a subnotificação sobre os indígenas em todo o Brasil, não apenas na Região Amazônica. 

Como alertam o ISA e diversos indigenistas, um dos grandes problemas do desmonte das políticas públicas e da corrente visão do Governo Federal é não considerar o cidadão indígena como alguém que, ancestral e historicamente, sempre contribuiu para a proteção das florestas, dos rios, da qualidade do ar, do equilíbrio ambiental e dos nossos biomas de forma holística. Os povos que resistiram à colonização, à escravidão, à evangelização forçada, a diversas epidemias, genocídios e à descaracterização cultural ao longo de 520 anos de exploração da Terra Brasilis agora enfrentam uma nova ameaça, a pandemia da Covid-19, sendo mais uma vez, ignorados, espoliados e massacrados em seus direitos pelo Estado Brasileiro. A esses cidadãos tem sido negado inclusive o direito à vida, conforme o Artigo V da Constituição Federal. 

Os povos indígenas tem se mobilizado e conseguido resistir por seus próprios meios, mas precisam de apoio dos diversos setores da sociedade civil organizada, universidades, pesquisadores/as, ONGs, profissionais de saúde e demais cidadãos e cidadãs, que compreendem que a construção da democracia começa pelo reconhecimento das populações indígenas como fundamentais para a consolidação do presente e do futuro da Amazônia e do Brasil. 



Prof. Dr. Hilton P. Silva/Autor Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA/UFPA; Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia – PPGSAS; Coordenador do Laboratório de Estudos Bioantropológicos em Saúde e Ambiente – LEBIOS, Belém, Pará. 







Ariana da Silva/Co-autora Prof.ª Dr.ª em Bioantropologia; Docente da SEDUC/UEPA; Vice-Líder do Grupo de Estudos em Bioantropologia do Pará – GEB/UEPA. 










Matéria do Jornal Roteiro de Notícias disponível no link (por hora desativado): https://jornalroteirodenoticias.com.br/o-enfraquecimento-das-politicas-publicas-em-tempos-de-covid-19-e-a-saude-indigena-na-amazonia/?fbclid=IwAR0JjQhL_sXlitI1134L7CnILuFcBGdhPGen03NGIZKA5562ExJ8iyXk1Qs 

By Grupo de Estudos em Bioantropologia do Estado do Pará às agosto 04, 2020